Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.Uma réstia de parte do sol,um campo,...,um bocado de sossego com um bocado de pão,não me pesar muito o conhecer que existo,e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim.Isto mesmo me foi negado,como quem nega a sombra não por falta de boa alma mas por não ter que desabotoar o casaco...
Escrevo,triste,no meu quarto quieto,sozinho como sempre tenho sido,sozinho como serei.E penso se a minha voz,aparentemente tão pouca coisa,não incarna a substância de milhares de vozes,a fome de dizerem se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha no destino quotidiano ao sonho inútil,à esperança sem vestígios.Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele.Vivo mais porque vivo maior.Sinto nao minha pessoa uma força religiosa,uma espécie de oração,uma semelhança de clamour.mas a reacção contra mim desce-me da inteligência...Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores,sinto-me com sono;olho,sobre o papel meio escrito a vida vã sem beleza e o cigarro barato...sobre o mata-borrão velho.Aqui eu,neste quarto andar, a interpelar a vida!a dizer o que as almas sentem! a fazer prosa..
Livro do Desassossego de Bernardo Soares
1 comment:
Simplesmente bonito.
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