Thursday, November 17, 2005

Ele soube disto quando publicou, já sem querer, já sem esperança, por mero acaso, um livro, um livro que foi para ele a prova editada de que não era escritor nenhum. Não porque o livro não estivesse bem escrito, porque estava bem escrito, não porque não houvesse gente que o tivesse lido e gostado de o ler. Não, foi só porque quando o soube, de uma maneira certa, estranhamente certa, que não tinha sido ele, que não podia ter sido ele que o escrevera. Talvez as suas mãos, talvez, talvez fossem as suas mãos a escrever, mas ele não, ele que nem sabia escrever.

Porque quando ele leu o que as suas mãos escrveram o que aconteceu foi sentir-se abalado sem saber porquê, como quando não se sabe o que se tem, sem conseguir dizer o que lhe causava aquela impressão de se sentir profundamente abalado. Não, não era que estava escrito, porque o que está escrito está vivo quando se lê, era qualquer coisa que extravasara para fora do que era contado. O que era, soube-o depois, era o desinteresse, a indiferença, o não ter nada a ver com aquilo que era contado, como se aquele que tinha escrito há muito tivesse morrido. Sim, o que as suas mãos fora escrito por um que já tinha morrido, em si mesmo morto. Era isso, sim, que o tinha afectado, que o tinha ablado: o ficar a saber, sem primeiro o conseguri reconhecer, que havia nele um que já tinha morrido, um para quem a verdade é impiedosa e a vida não é boa nem má, um que olhava a vida como a vida se olha a si própria e se descreve de muito longe, de uma forma surda, falecida.

Pedro Paixão " Boa noite"

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