Friday, April 13, 2007

Penso às vezes, num deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim gente que me " compreenda", os meus, a família verdaeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, (eu) terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu e só a desefeição que houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e quando o compreendam, hão-de esccrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal acontecesse. E o que escrever isto será na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro.
Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos,sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.


Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou.Uma alegria do ar é fresca de mais contra a pele.O dia vai acabando não em cinzento, mas em azul pálido.Um azul vago reflecte-se, mesmo,nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de longe.
Sentir não importa.Acende-se um ou outra montra.
Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me conhecesse.


Bernardo Soares " O livro do Desassosssego"

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